O Onda Negra surge como um desejo de exteriorização de algumas reflexões que estão diretamente ligadas à questão racial. Almejamos com este espaço a problematização e discussão sobre temas como o racismo, o preconceito racial e a discriminação. Possivelmente, veremos também discussões sobre processos que apontam para uma predominância da desigualdade social e racial no nosso país.
Em alguns momentos, apresentaremos sugestões, análises e reflexões de filmes que abordam diretamente ou indiretamente a temática racial, ou, que dialoguem com a mesma. Salientamos que dentro desta proposta não deixaremos de abordar, por exemplo: a questão de gênero, os processos do mundo do trabalho e a questão racial, a questão da violência racial e, principalmente, alguns processos que envolvam reparação e ganhos para a população negra, como no caso das políticas de Ações Afirmativas.
Por último, explicamos que a origem do nome Onda Negra foi pensado a partir do livro da Celia de Azevedo, "Onda negra, medo branco". Nesse livro, a autora estabelece um intenso debate em torno das "questões senhoriais travadas por abolicionistas e imigrantistas ao longo do século dezenove. Decerto esse debate ainda se arrastaria pelo tempo não fosse a intervenção dos próprios escravos com suas ações autônomas e violentas, aguçando os medos da 'onda negra', imagem vívida forjada no calor da luta por elites racistas."
Sendo assim, julguei pertinente fazer uma alusão a esta "onda negra" que se tratava do medo das elites com os retrospectos das lutas anti-escravistas (ou por libertação dos negros escravizados) como por exemplo, a Revolução Haitiana; para tratar dos problemas contemporâneos que envolvem a condição do negro em nossa sociedade. Enquanto as lutas ganham força por ganhos de direitos, por igualdade de condições no mercado de trabalho em relação aos brancos, por políticas de reparação e de inclusão com as Ações Afirmativas, percebe-se que todo esse movimento ainda desperta em alguns grupos da nossa sociedade um incômodo, uma desconfiança e a meu ver um medo.
quinta-feira, 11 de setembro de 2014
O nosso desejo é que o seu desejo não nos defina. A nossa história é outra!
Como
se não bastasse as situações e manifestações de racismo que se evidenciaram nas
últimas semanas, seja nos campos de futebol (no caso do goleiro Aranha), em
shoppings (o homem negro que tirou a roupa para provar que não tinha roubado
nada) e em lojas de centro (pai que parte em defesa dos filhos contra o racismo
institucional de policiais), a Globo vem com mais um seriado chamado “Sexo e as
Negas”. Só pode ser brincadeira...! Infelizmente não é.
Não
vou entrar nas questões da pertinência ou não pertinência da série, mas
pretendo discorrer sobre suas aparentes intenções e possíveis perigos. Antes, destaco
o meu entendimento sobre algumas expressões que sempre me incomodaram (histórica
e sonoramente). Um pouco antes do anúncio da série pude discutir (informalmente)
e fazer referência a tais expressões e o peso que elas detêm ainda hoje. Estou
falando dos termos: “nega”, “nego” e “neguinho”.
Dito
isso, explico que não estou pensando nas dimensões de carinho, nas expressões
de amor e afeto que muitos usam para se referirem aos seus parceiros e
parceiras, às amigas e aos amigos, mas reflito sobre o uso de tais termos e na
dimensão da inferiorização, da violência racial e dos efeitos perversos da
desigualdade e discriminação raciais (mesmo sem terem a noção de tais práticas).
Pois bem, quando nos deparamos com expressões do tipo: “Você está pensando que
eu sou o quê? Eu não sou ‘tuas Negas’!”, “Você viu que folgado? ‘Neguinho’ vem
aqui e acha que pode fazer o que quer”, “Nego acha que pode ir chegando assim e
pronto”. Pensem em como estas expressões fazem parte do nosso cotidiano e são
pronunciadas sem ao menos refletirmos cuidadosamente (salvo as raras exceções) nas
suas origens e na amplitude dos seus significados.
Esse
“nego”, essa “nega” e esse “neguinho” são frutos de um período escravista,
expressões acalentadas e nutridas nos fluxos e refluxos de uma sociedade
branca, elitista, machista e racista. O “eu
não sou tuas negas” advém de um passado em que as mulheres negras eram propriedades
dos senhores de escravos e sofriam todos os tipos de barbaridades (o estupro
era um deles); o fato de que se podia fazer qualquer coisa com uma negra (nos
referindo às dimensões dos desejos sexuais), visto que a mesma era uma
propriedade, logo, destituída de humanidade, se tornou um fenômeno comum e de difícil
extinção nos processos constitutivos das relações sociais do nosso país. Em outras
palavras, o que não se fazia abertamente e livremente com a mulher branca (sem
o peso moral e cerceador da “sociedade tradicional da época”), desembocava em
noites de violência e estupros nas senzalas ou nos recônditos da casa grande.
Já
os outros dois exemplos têm haver com o uso direto e imediato da liberdade adquirida,
com o ganho de direitos e o não reconhecimento por parte da elite brasileira no
que diz respeito à “igual dignidade” dos negros e das negras.
O
perigo é que essas expressões têm poder. O discurso por mais “inocente” que
possa parecer, por mais que assuma formas de “simples” expressões do nosso
cotidiano, causa danos e retroalimenta fatores que são condicionantes do racismo
que se evidencia no Brasil. A partir de tais fatores colocados, qual seria o
lugar do homem negro e da mulher negra em nossa sociedade? Pensemos nos
seriados produzidos pela empresa Rede Globo (salvo a exceção da novela Lado a Lado) e nos perguntemos: que
tipo de lugar ela (a empresa) nos impõem “sutilmente”, ou, ao menos, quer que
aceitemos passivamente para nos levar a crer que está nos dando a oportunidade
que há tempos nos foi negada.
Por
que o uso do termo “as Nega”, ao invés de as “Negras”? Por que Victoria Santa
Cruz, artista e ativista afroperuana, ao compor o poema “Me Gritaram Negra!”
não usou o “Nega”? Por que “Blogueiras Negras”? Acho que consigo responder:
pelo fato de enxergarem uma força política, transformadora e aglutinadora que
seja capaz de potencializar a ação de combate, resistência e valorização da etnia
de um povo, fundamentalmente, das mulheres negras.
Com
isso, pergunto: o que este seriado vai trazer de importante para a valorização da
mulher negra enquanto sujeito político e independente nas suas mais diversas
interações sociais na atualidade?
Quando
veremos as crianças negras, principalmente, as meninas, se identificando com
personagens negras que sejam médicas, filósofas, advogadas, universitárias,
executivas “bem sucedidas” sendo as protagonistas das suas histórias? Exemplos como
esses, já possibilitaria uma percepção de que existem muito mais questões e
objetivos a serem alcançados que não se resumem ao “sexo das negas”. Entretanto,
entendo que este não é o foco e nem a proposta da empresa Rede Globo, o que lhe
interessa é continuar reproduzindo a imagem da mulher negra no âmbito do sexo
(como “objeto” puro e simplesmente para o prazer), do carnaval e do samba, como
empregadas domésticas das famílias brancas e ricas que estão todos os dias nas
novelas brasileiras.
Não
podemos cair na “ilusão discursiva” (que corrobora e age em prol da manutenção
do status quo), que vê como
válida a realização do seriado, pois a representação da vida da mulher negra,
mesmo sendo na periferia, seria uma expressão da realidade que muitas vivem em
nosso país. Consigo entender esse argumento, mas não concordo que este seja o
único caminho a ser utilizado pela emissora em questão. Será que dentro do
enredo da série, alguma personagem enfrentará discriminação por ser uma
estudante universitária que através da política de ação afirmativa se tornou uma
representante combativa de um pequeno grupo de alunas negras no curso de
medicina da universidade X? Ou teremos alguma personagem enfrentando problemas como
machismo ou racismo praticado na empresa em que ela está pleiteando o cargo de
“Diretora Executiva”?
O
idealizador desta série não está preocupado com essas questões, o lugar social
dele até permitiria que enxergasse, caso estivesse aberto a ver e a
problematizar esses fatores, mas o que ele faz, achando que está “ajudando” os
colegas e as colegas negras, é reproduzir estereótipos ancorados historicamente
na representação social da mulher negra já que não apresenta nada novo, que irrompa
os construtos impositivos de um padrão discriminatório do “lugar” do negro ou
da mulher negra na sociedade brasileira, questionando, cutucando, fazendo
refletir ou aprofundar um debate qualificado sobre essa temática tão cara à
noção dos lugares sociais, carreiras, representações possíveis de serem
assumidas por negros e negras neste país.
Nas
palavras dele em uma nota explicativa sobre a polêmica do programa: “dói ver a
luta dos colegas negros na profissão. As oportunidades são reduzidas, não
trabalham sempre e, sem exercício, não há aprendizado, como sabemos. Pensei que
aquela ideia, surgida numa feijoada, na Cidade Alta de Cordovil, pudesse ser um
programa que refletisse um pouco a dura vida daquelas pessoas, além de empregar
e trazer para o protagonismo mais atores negros. Basicamente, foi essa a ideia
e nem achei que iriam aceitar o programa. Qual é o problema, afinal? É o sexo?
São as negas?” (Ele ainda fala um pouco mais sobre a serie).
O
problema é que não vemos uma produção que rompa com a perspectiva estereotipada
que sempre enquadra os negros e as negras nas representações da “nega para o
sexo”, “do nego bom de cama e pegador” e “das mulheres humildes e pobres” que
estão em trabalhos subalternos e de ínfimo reconhecimento social, sonhando com
um amor verdadeiro. Precisamos de mais posturas engajadas, visões críticas, diretores
de coragem para romper com estes padrões que insistem em ser colocados para nós
negros e negras.
Parabéns por ter uma visão crítica...não gostei também desse termo que a globo colocou na minisérie
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